7.31.2011

IDÉIAS DE CANÁRIO

http://www.germinaliteratura.com.br/2008/contosdemachado_ideiasdecanario.htm

À MESA





Os senhores hoje comerão sementes.
Algumas estão verdes,
outras – grãos de sonho apenas – são espúrias
outras ainda, desdobradas, arvorecem.

Comerão sementes e também o pêlo dos nossos bichos.
Muito enxaguada e colorida de quedas,
entretecida de sedas, horizontes,
linho, naquim, arame e estilete
(mas entretecida principalmente dos sulcos das nossas palmas e rostos)
                        - esta trama será o prato do dia.

A refeição será iluminada pelo contraste de nossos cabelos e pupilas.
Há frutas que colhemos,
outras pretendidas.
Algumas de areia,
outras putrefeitas.
Na falta de mel trouxemos muitas flores e abelhas.
Assim se explica a quantidade de terra que nos cerca -
peço então que os senhores não se incomodem com eventuais formigas
pois elas também são convidadas.


     O vinho será servido somente quando seiva suficiente correr em nossos braços.

O sol à pino, os senhores sentem.
Vejamos o dia que declina,
até incendiar-se como esse grão de romã,
até que, com a lua no copo,
brindemos a prata dos reflexos.

Os senhores sentem,
estão em casa:
hoje eu cobri a mesa com o branco dos nossos lençóis.




7.21.2011

ANATOMIA DO PRESENTE

a bacia plena de descuidos, a espinha prolixa de entortamentos. e no sorriso as faces encurvam-se em covas (as covas úmidas de lágrimas quando as pede a circunstância) as mãos polpudas, as unhas enxeridas procurando assunto entre os pudores dos buracos. sempre os pés bem dispostos à preguiça. no pescoço o inconfundível colar de carrapatos - as orelhas arruinadas entre os brincos, os seios tímidos ante a franqueza do umbigo. as coxas reles a pele desamparada frente à gravidade, os joelhos resignados frente à gravidade dos calçados, dos pecados. as sobrancelhas desgarradas, as pálpebras se batendo incomunicáveis – os dentes roendo as maçãs do rosto, a língua enrolando o caroço
de morte em morte se recompõe este delicado ossuário, que assim enfeitadinho de gorduras se expõe, comungando estrias e coceiras, delicadeza que então tosse e range, pisa torto – essa carne exígua contra os desmandos da antimatéria, dos mistérios, da música – assim, amiúde, se coloca a carne exígua contra os paradigmas e as paredes, se coloca mas desafina, toda terra, formigas nas axilas

ANATOMIA DA MEMÓRIA

Caríssimos convivas:
quando criança eu amei um animal que não existe.
Esse amor triste às vezes me inflamava as amídalas
mas no mais das vezes era alegria:
num meio pingo dágua
de através os cílios
meu olho hipermétrope era microscopia.
E assim, caríssimos, eu era donzela-cientista
(e donzela digo
com a palavra em seu grau mais riso)
Em meio a esse amor violento de invenção aprendi uns silêncios
pra mantê-lo vivo
e uns estrebilhos pra vingar canção
Ele me ensinou a aproveitar na queda o colo do ar
e assim eu pude, para o assombro doutros convivas,
 ficar boiando perto do teto
(eu só descia quando aquele airoso colo ameaçava ventania)
Ainda que excelsa montaria,
inexistido o animal era simples:
tinha ser de égua e alga,
montanha de azul sem nome:
brinquedo de lama e amuleto
passaredo e olaria.
Inexistido ele era vapor e planta,
além de carne, cascos, escamas
- e sei que mesmo nomeando tantas conhecidas substâncias,
os alegres convivas não o distinguiriam
dum inseto entorno da lâmpada.

Pra afugentar a tentação de realidade,
ele trazia na testa o branco corno
(os convivas compreendam: era apenas guarnição –
disfarçado de mitologia
o amor estava preservado da loucura e da verdade)

Depois de submeter sua delicada inexistência
a esta dissecação lírica
frente aos olhos de meus convivas
faço ao animal um apelo:
 que, entre os grandes e os sérios,
 machos e fêmeas, os adultos,
ele sobreviva
e que, de tão vivo, ria, generoso, 
deste carinho torto que fiz-lhe,
este limbo de linho e água
                                 esta gaiola - algaravía)